segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Poesia portuguesa - 086




Tabacaria (1)
Fernando Pessoa (1888-1935)

Não sou nada. 
Nunca serei nada. 
Não posso querer ser nada. 
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. 

Janelas do meu quarto, 
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é 
(E se soubessem quem é, o que saberiam?), 
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, 
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, 
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, 
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, 
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, 
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. 

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. 
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, 
E não tivesse mais irmandade com as coisas 
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua 
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada 
De dentro da minha cabeça, 
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. 

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu. 
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo 
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, 
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. 

Falhei em tudo. 
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. 
A aprendizagem que me deram, 
Desci dela pela janela das traseiras da casa, 
Fui até ao campo com grandes propósitos. 
Mas lá encontrei só ervas e árvores, 
E quando havia gente era igual à outra. 
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar? 

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? 
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! 
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! 
Génio? Neste momento 
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu, 
E a história não marcará, quem sabe?, nem um, 
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. 
Não, não creio em mim. 
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas! 
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? 
Não, nem em mim... 
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo 
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando? 
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas - 
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -, 
E quem sabe se realizáveis, 
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente? 
O mundo é para quem nasce para o conquistar 
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. 
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. 
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, 
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. 
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, 
Ainda que não more nela; 
Serei sempre o que não nasceu para isso; 
Serei sempre só o que tinha qualidades; 
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta 
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, 
E ouviu a voz de Deus num poço tapado. 
Crer em mim? Não, nem em nada. 
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente 
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, 
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. 
Escravos cardíacos das estrelas, 
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama; 
Mas acordámos e ele é opaco, 
Levantámo-nos e ele é alheio, 
Saímos de casa e ele é a terra inteira, 
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. 

(Come chocolates, pequena; 
Come chocolates! 
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. 
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. 
Come, pequena suja, come! 
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! 
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho, 
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) 

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei 
A caligrafia rápida destes versos, 
Pórtico partido para o Impossível. 
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, 
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro 
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas, 
E fico em casa sem camisa. 

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas, 
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva, 
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, 
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, 
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, 
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais, 
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -, 
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire! 
Meu coração é um balde despejado. 
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco 
A mim mesmo e não encontro nada. 
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. 
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, 
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, 
Vejo os cães que também existem, 
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, 
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.) 

Vivi, estudei, amei, e até cri, 
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. 
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, 
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses 
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); 
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo 
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente. 

Fiz de mim o que não soube, 
E o que podia fazer de mim não o fiz. 
O dominó que vesti era errado. 
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. 
Quando quis tirar a máscara, 
Estava pegada à cara. 
Quando a tirei e me vi ao espelho, 
Já tinha envelhecido. 
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. 
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário 
Como um cão tolerado pela gerência 
Por ser inofensivo 
E vou escrever esta história para provar que sou sublime. 

Essência musical dos meus versos inúteis, 
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse, 
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, 
Calcando aos pés a consciência de estar existindo, 
Como um tapete em que um bêbado tropeça 
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada. 

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. 
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada 
E com o desconforto da alma mal-entendendo. 
Ele morrerá e eu morrerei. 
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos. 
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também. 
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, 
E a língua em que foram escritos os versos. 
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. 
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente 
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, 
Sempre uma coisa defronte da outra, 
Sempre uma coisa tão inútil como a outra, 
Sempre o impossível tão estúpido como o real, 
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, 
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. 

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?), 
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. 
Semiergo-me enérgico, convencido, humano, 
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário. 

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los 
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. 
Sigo o fumo como uma rota própria, 
E gozo, num momento sensitivo e competente, 
A libertação de todas as especulações 
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto. 

Depois deito-me para trás na cadeira 
E continuo fumando. 
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando. 

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira 
Talvez fosse feliz.) 
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela. 

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). 
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica. 
(O dono da Tabacaria chegou à porta.) 
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. 
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo 
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu. 

Fernando Pessoa (1888-1935)

(1) -  5-1-1928 / Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993): 252. 1ª publ. in Presença, nº 39. Coimbra: Jul. 1933.


 
Tabacaria Estrela Polar - Lisboa
"Tabacaria", poema de Álvaro de Campos na revista Presença n.º 39, Julho de 1933.

domingo, 8 de outubro de 2017

2.ªs Jornadas para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial do Alentejo


A Mesa do 4º Painel. Fotografia de Luís Guimarães.

Decorreram no passado dia 16 de Setembro no Auditório São Mateus, em Elvas, as 2.ªs JORNADAS PARA A SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL DO ALENTEJO, as quais relativamente ao Património Cultural Imaterial visavam: - Contribuir para a salvaguarda e uma mais ampla percepção da sua riqueza e diversidade; - Propagar a sua importância; - Promover e valorizar à escala local as suas mais diversificadas e singulares expressões que os indivíduos, os grupos e as comunidades protagonizam e que dão sentido à própria identidade do país.
Foram organizadas conjuntamente pela Associação Portuguesa para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial e pela Câmara Municipal de Elvas, contando com a colaboração de várias Câmaras Municipais (Évora, Ferreira do Alentejo, Estremoz, Vidigueira, Grândola, Marvão e Campo Maior) da Entidade Regional de Turismo do Alentejo e Ribatejo e de outras instituições como Sociedade de Geografia de Lisboa, Museu de Arqueologia e Etnografia do distrito de Setúbal, Associação Pédexumbo e Pporto dos Museus.
Nas Jornadas foram apresentadas 13 comunicações distribuídas por 4 painéis, cada um deles com o seu moderador.
No 4º painel, foi apresentada por Hernâni Matos a comunicação “O FIGURADO DE ESTREMOZ COMO PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL DA HUMANIDADE EM 2017?”. O comunicante, na sua qualidade de coleccionador e investigador do figurado de Estremoz, abordou sucessivamente os seguintes tópicos: 1 -Coleccionar bonecos de Estremoz; 2 - Invariância e mutabilidade nos bonecos de Estremoz; 3 - Marcas de identidade; 4 - Galeria dos bonecos de Estremoz; 5 - Tradição, inovação e mudança de paradigma; 6 -Bonecos de Estremoz a Património Cultural Imaterial da Humanidade.
A comunicação acompanhada de projecção, realçou a singularidade da manufactura “sui-generis” do figurado de Estremoz que a distingue de todo o figurado português. Destacou ainda o facto de bonecos de Estremoz serem pela sua excelência, notórias marcas de identidade cultural estremocense e alentejana.
A terminar, o comunicante confessou ter os bonecos de Estremoz na massa do sangue, pelo que subscreveu com alma e coração, a sua Candidatura a Património Cultural Imaterial da Humanidade e como jornalista, tem procurado através dos seus escritos, divulgar e potenciar uma Candidatura, que acredita será vitoriosa em Dezembro próximo.


Um aspecto da assistência. Fotografia de Luís Guimarães.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

E S T R E M O Z : Beldroegas para o Brasão Municipal, já!



Recentemente foi constituído na nossa cidade, um comité para a defesa dos direitos cívicos das beldroegas. Aquele colectivo vegetal fez-me chegar às mãos um documento, o qual dada a sua importância, reproduzo na íntegra e sem comentários.

MANIFESTO DAS BELDROEGAS
Bilhete de identidade
Nós beldroegas, designadas cientificamente por “Portulaca oleracea”, somos encaradas como ervas daninhas, pois desenvolvemo-nos muito bem em climas temperados, solos drenados e a céu aberto. Daí brotar-mos em hortas, pomares, quintais, calçadas e passeios. Vivemos mais de um ano e temos crescimento rápido, chegando a medir 40 cm de comprimento. Somos rasteiras, com folhas espessas e carnudas e flores amarelas pequenas de cinco pétalas.
Há quem nos considere plantas invasoras, difíceis de ser erradicadas, pois cada uma de nós pode produzir elevado número de pequenas sementes, as quais podem permanecer viáveis por mais de dez anos. Todavia há quem nos considere invasoras benéficas em plantações, por sermos consideradas plantas companheiras doutras como é o caso do milho.
Utilização culinária
Temos sabor ligeiramente ácido e os nossos caules, as nossas folhas e as nossas flores podem ser comidos crus ou cozinhados sob a forma de sopas, saladas, esparregado ou infusão. São bem conhecidas sopas como: sopa de beldroegas, sopa de beldroegas com arroz, sopa de beldroegas com coentros, sopa de bacalhau com tomate e beldroegas, sopa de grão com beldroegas salteadas, arroz de beldroegas e açafrão, arroz integral de tomate e beldroegas. Já quanto a saladas, destacamos: salada de beldroegas, salada de beldroegas com tomate e cebola, salada de batata com beldroegas e alcaparras.
Uso medicinal
Somos ricas em substâncias como ómega-3, glicose, frutose, sacarose, α-tocoferol, β-caroteno, glutationa, vitaminas A, B, C, minerais como magnésio, cálcio, potássio e ferro.
Temos propriedades diuréticas, emolientes, emenagogas, laxantes, vermífugas, anti-escorbúticas, sudoríferas, depurativas, anti-inflamatórias, anti-hemorrágicas, anti-oxidantes e anti-cancerígenas.
Somos eficazes na depuração do sangue, no tratamento de doenças cardiovasculares, hipertensão, diabetes, doenças da vista, da bexiga, rins e vias urinárias, disenteria, enterite aguda, mastite, hemorróidas, cistite, hemoptises, queimaduras, úlceras, artrite e outros distúrbios inflamatórios e auto-imunes, bem como no cancro.
Os nossos talos e folhas pisadas podem ser aplicados sobre queimaduras e feridas, pois aliviam a dor e aceleram o processo de cicatrização. O suco das nossas folhas pode ser utilizado para tratar inflamações oculares, queimaduras, eczemas, erisipelas e calvície, quando aplicado directamente na área afectada. O nosso suco ingerido trata problemas de fígado, bexiga e rins. Sob a forma de chá temos propriedades diuréticas. As nossas sementes quando ingeridas combatem vermes intestinais.
Uso ornamental
Por sermos floridas, há variedades nossas que são cultivadas em jardins, canteiros, vasos e floreiras. Propagamo-nos rapidamente, florescemos todo o ano e não exigimos cuidados especiais para além de sol e água.
Nós e o Executivo Municipal
O nosso relacionamento com o Executivo Municipal é excelente e é mesmo o melhor de sempre. Outra coisa não seria de esperar, já que nos permite crescer à vontade por tudo o que é calçada e passeio. Como as ruas estão por varrer, pensamos que seja gentileza da sua parte, a fim de que não tenhamos falta de nutrientes. O nosso grande problema é a seca. Daí que façamos um apelo a que nos mandem regar. As beldroegas agradecem.
Uma justa reivindicação
A nossa proliferação pela cidade e o nosso carácter ornamental, são reveladores do nosso empenho bairrista em corporizar o slogan do Município: ESTREMOZ TEM MAIS ENCANTO.
A Política Agrícola Comum (PAC) da União Europeia é responsável pelo baixo indicie de cultivo de cereais no nosso concelho e entre eles, o tremoceiro que figura no Brasão Municipal. Daí e dada a nossa abundância, não é despropositado reivindicar a nossa inclusão naquela composição heráldica, em substituição do tremoceiro. Daí que proclamemos:
- BELDROEGAS PARA O BRASÃO MUNICIPAL, JÁ!

Comité para a Defesa dos Direitos Cívicos das Beldroegas

Hernâni Matos

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

O termómetro da Singer



No pino do Verão quando se fazia sentir a canícula, o edifício da antiga Singer no Rossio Marquês de Pombal em Estremoz, era ponto de passagem e de paragem obrigatória. É que na frontaria do rés-do-chão existia um termómetro de razoáveis dimensões, que permitia aos transeuntes avaliar a temperatura do ar. Estava ali há muito tempo. Pelo menos desde o Tempo da Outra Senhora.
Era um termómetro “SINGER SEWING MACHINES”, com dupla escala, Celsius e Fahrenheit, o qual apesar de ser um termómetro privado, prestava um serviço público.
Era um termómetro bem-pensante e que falava com as suas escalas, dizendo coisas do tipo:
- “Isto hoje é só a subir. Vão ver que vamos ter um corrupio de gente a olhar para nós!”
- “Aquele está a ler mal a temperatura. Esqueceu-se que está mais baixo e está a cometer um erro de paralaxe.”
- “Aqueles dois fizeram uma aposta. Depois de lerem a temperatura, um teve que dar uma moeda ao outro.”
- “Tomara que venha sombra. De tanto subir a temperatura estou a ficar com tonturas.”
Por vezes, as pessoas mais velhas que por ali paravam lembravam-se de pérolas do nosso adagiário, arrecadadas nas espaçosas gavetas da sua memória: “Cigarra cantou, calor chegou.”, “Ande o calor por onde andar, pelo Santo António, há-de chegar.”, “Ande por onde andar o Verão, há-de de vir no S. João.”, “No tempo quente, refresca o ventre.”, “Nem no Inverno sem capa, nem no Verão sem cabaça.”, “No amor e no calor, não metas o cobertor.”.
Hoje tudo isso acabou. Ali já não se vendem nem máquinas Singer de costura ou de tricotar, nem tão-pouco as meninas vão aprender a bordar ou a tricotar, que as virtudes que é suposto devam ter, já não são estas.
Do termómetro apenas resta o sítio onde foi útil aos transeuntes desde o Tempo da Outra Senhora.
Com o desaparecimento do termómetro da Singer, a cidade ficou mais pobre. Daí que me atreva a fazer uma sugestão. Fico à espera que na mesma zona apareça uma entidade privada com disponibilidade para comprar um termómetro de parede, de preferência Singer e o aplique na sua frontaria. Seria uma atitude louvável e que lhe traria prestígio, visto com isso prestar um serviço público. A população agradece e fica à espera.


domingo, 17 de setembro de 2017

FRANCO-ATIRADOR. Textos de cidadania de um alentejano de Estremoz.


Aspecto da assistência. Fotografia de Luís Guimarães.

O EVENTO EM SI

Pelas dezasseis horas do passado dia 2 de Setembro, teve lugar na Igreja dos Congregados, em Estremoz, o lançamento e apresentação do livro “FRANCO-ATIRADOR. TEXTOS DE CIDADANIA DE UM ALENTEJANO DE ESTREMOZ”, evento que contou com a participação de mais de uma centena de pessoas.
O painel de apresentação do autor e do livro foi constituído por Fernando Mão de Ferro (da editora Colibri), Hernâni Matos (autor), Francisca Matos (prefaciadora), António Júlio Rebelo (posfaciador) e Armando Alves (autor da capa), tendo-se registado intervenções dos quatro primeiros.
No local esteve ainda patente ao público uma exposição de exemplares de figurado e de arte conventual de Estremoz, referidos no livro.

PALAVRAS DO AUTOR

MINHAS SENHORAS E MEUS SENHORES:

Procurarei ser breve, tanto quanto possível. Começarei pelos agradecimentos.
Em primeiro lugar, quero agradecer ao Pároco de Santo André Dr. Fernando Afonso, ter-me possibilitado a apresentação do livro na Igreja dos Congregados, que além de estar situada no centro da cidade é um espaço excelente, já que é amplo, com muita dignidade e onde se respira espiritualidade. Tudo isso são factores favoráveis à apresentação do livro neste local. Mas há duas outras razões e qualquer delas tem a ver com o exercício da cidadania, que é o tema central do meu livro.
Em 1º lugar, a atitude de resistência dos frades oratorianos que em 1808, no decurso da 1ª invasão francesa, esconderam no Convento dos Congregados, a imagem da Rainha Santa Isabel trazida da sua Capela no Castelo e que assim escapou ao saque dos franceses.
Em 2º lugar, a Igreja dos Congregados incompletamente construída nos anos 60 do séc. XX, simboliza a determinação da comunidade local em ressarcir a Paróquia de Santo André do derrube da Igreja homónima, a mando do Estado Novo, que acabaria por morrer de velho.
São factos importantes no meu registo de memória e que por isso constam no livro. Este, insere entre outros os seguintes textos profusamente ilustrados:
- Senhor Jesus dos Passos de Estremoz
- As Festas da Exaltação da Santa Cruz de 1963
- Rainha Santa Isabel, Padroeira de Estremoz
- Santo António na Tradição Popular Estremocense
Daí que à semelhança do que aconteceu em 2012 com o lançamento do livro anterior, me tenha lembrado de expor na Igreja dos Congregados, exemplares de figurado e de arte conventual de Estremoz, referidos naqueles textos.
Como artesão das palavras foi a maneira encontrada de fazer ponte com artesãos do barro e da arte conventual que são os melhores embaixadores desta terra transtagana, aquém e além fronteiras. Também eles, vivos ou finados, são heróis que exalto ao longo do livro, pelo fascínio que exercem em mim, as técnicas ancestrais que dominam e lhe brotam miraculosamente à flor das mãos.
Em segundo lugar, quero agradecer ao editor Fernando Mão de Ferro da Colibri, editora prestigiada que tem um projecto editorial com o qual me identifico. Foi a ele que submeti para apreciação o projecto de edição do presente livro, o qual foi aceite. Daí estarmos hoje aqui.
Em terceiro lugar, quero agradecer ao pintor Armando Alves, amigo de longa data e figura cimeira da cultura nacional e com obra espalhada pelas sete partidas do Mundo. “Armando Alves, Inventor de Céus e Planícies” no dizer de José Saramago, está indissociavelmente ligado à História das Artes Plásticas em Portugal e revolucionou as Artes Gráficas. Uma capa do Armando é uma obra de arte. Daí que lhe tenha pedido para criar a capa, ao que ele acedeu sem hesitação alguma. O resultado é bem conhecido e nele está magistralmente expresso o Alentejo vermelho das terras de barro de Estremoz, gravado não só na sua como na nossa alma e, que sob a direcção atenta e calorosa do seu olhar de visionário, as suas mãos sabem com mestria transmitir a tudo aquilo que faz. A capa do Armando elevou o livro a uma dimensão superior àquela que já tinha. Estou-lhe infinitamente grato por isso.
Em quarto lugar, quero agradecer aos professores Francisca de Matos e António Júlio Rebelo, duas figuras prestigiadas da comunidade local, bem conhecidas nos meios culturais. São também amigos de longa data, companheiros de trilhos culturais, com os quais é gratificante caminhar. Tanto um como o outro me conhecem bem e à minha escrita. Daí que tenha sido inescapável convidá-los a prefaciar e a posfaciar o meu livro. À semelhança da capa do Armando, também o prefácio da Francisca de Matos e o posfácio do António Júlio Rebelo elevaram o livro a uma dimensão superior àquela que já tinha. Também a eles estou infinitamente grato por isso e à Francisca de Matos também a revisão apurada e meticulosa do texto.
Em quinto lugar, quero agradecer a presença de todos vós, a qual é para mim gratificante e me dá estímulo para continuar.

Permitam-me agora falar um pouco de mim e do livro.

Como cidadão tenho uma visão multifacetada do mundo e da vida, que me leva a interpretar a realidade sob múltiplos ângulos interdisciplinares, na procura assimptótica da verdade. A minha amiga Francisca Matos disse-me um dia: - “Nunca se sabe para onde é que o Hernâni vai disparar!”. De facto, tenho um espectro largo de interesses pessoais, os quais estão na origem das temáticas abordadas serem diversificadas e muitas vezes, uma síntese dialéctica das mesmas.
Na escrita assumi-me como franco-atirador, que como sabem é um atirador de precisão. As minhas armas são os abastados arsenais da minha memória e da minha biblioteca e arquivo pessoais, a que acresce a pesquisa incessante, a exigência de rigor e a minha maneira própria de dizer as coisas.
Como franco-atirador do pensamento e da acção, os meus disparos não são previsíveis, nem sequer condicionáveis e muito menos controláveis. No texto “Que farei com esta coluna?” inserido no livro, proclamo que: “Um franco-atirador é como um cavalo à rédea solta que cavalga em sintonia com a campina, por necessidade telúrica e onírica de exercitar a liberdade. Legitima-me a força da razão que emana da Terra-Mãe, do espírito dos antepassados e da missão inescapável de passar o testemunho.”
Como escritor, jornalista e blogger, utilizo a escrita como instrumento ao serviço do exercício do direito de cidadania. Os meus textos constituem reflexões sobre problemas individuais e sociais, visando potenciar uma tomada de consciência por parte daqueles com quem interactuo, numa perspectiva de gerar dinâmicas de intervenção e transformação social que tenham como referência os direitos humanos.
O livro agora dado à estampa, constitui uma compilação seleccionada de textos do período 1998-2017. São escritos que foram publicados na imprensa local e no blogue “Do Tempo da Outra Senhora”, bem como em catálogos de exposições, assim como textos utilizados na apresentação de livros e como comunicações em sessões de índole diversa, para as quais fui convidado. Cada texto está perfeitamente identificado não só em termos de temporalidade, como no que respeita a local de publicação ou divulgação.
Os jornais desaparecem com o tempo e ficam confinados aos arquivos de bibliotecas e de editores. Daí ser importante compilar textos jornalísticos em livro, o qual assegura a perpetuidade dos textos, que assim servem para memória futura do que foi uma época.
O tema central do livro é o exercício da cidadania nos seus múltiplos aspectos por parte de um português, que tem a particularidade de ser um alentejano de Estremoz.
Por uma questão de metodologia os textos foram sistematizados e ordenados em seis grandes capítulos que designei sucessivamente por: Da Identidade, Das Palavras, Da Sociedade, Do Património, Da Cultura, Da Memória.
“Da Identidade” reúne textos que têm a ver com a minha matriz identitária como português, alentejano e estremocense. “Das Palavras” congrega textos que são reflexões sobre o acto de criação do texto literário e do texto jornalístico, bem como sobre a deturpação da escrita, não só devido a “gralhas” como a modificação indevida de textos na redacção, sem autorização prévia do autor. “Da Sociedade” junta textos de crítica social e política, tanto a nível local como a nível nacional. “Do Património” agrega textos referentes à defesa do património cultural, material e imaterial a nível local.”Da Cultura” é uma compilação de textos da área cultural relativos à minha actividade neste domínio. “Da Memória” é integrado por textos “in memorian” de figuras destacadas da comunidade que já partiram e cuja evocação me é grata. 
A escrita vale por ela própria e por isso o livro foi inicialmente concebido sem ilustrações. Porém, a dada altura, pensei que seria positivo ilustrá-lo com imagens de Estremoz do passado, maioritariamente pertencentes ao meu arquivo pessoal. Em boa hora o fiz, porque o público é diversificado e a visualização de imagens reforça o conteúdo do livro, que todavia não fica refém delas.
O livro foi dedicado à Memória de Francisco Joaquim Batista (Chico das Metralhadoras), velho republicano que me iniciou no exercício dos direitos de cidadania. Foi também dedicado a Manuel Madeira (Cachila) cineasta e amigo de juventude que incentivou em mim o gosto pela escrita.
A partir de agora este livro é também vosso. Desejo-vos que tenham tanto prazer na sua leitura, como eu tive em redigir cada texto.
Obrigado a todos pela vossa amizade e também pela vossa presença.
Bem hajam!

 Painel de apresentação do autor e do livro. Fotografia de Maria Helena Figueiredo.
 Aspecto da assistência. Fotografia de Luís Guimarães.
 Aspecto da assistência. Fotografia de Luís Guimarães.
Aspecto da assistência. Fotografia de Luís Guimarães.
 Aspecto da assistência. Fotografia de Luís Guimarães.
 Aspecto da assistência. Fotografia de Pedro Fortunas.
 Aspecto da assistência. Fotografia de Pedro Fortunas.
 O autor autografando exemplares da obra. Fotografia de Pedro Fortunas.
 Aspecto da assistência. Fotografia de Pedro Fortunas.
Aspecto da cúpula da Igreja dos Congregados. Fotografia de Pedro Fortunas.
 Exemplares de figurado e de arte conventual de Estremoz, referidos no livro.
Fotografia de Pedro Fortunas.
Exemplares de figurado e de arte conventual de Estremoz, referidos no livro.
Fotografia de Pedro Fortunas.

Video de apresentação do livro. Realização de Pedro Fortunas.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

José Maldonado Cortes - 55 anos de alternativa


Texto da autoria do cavaleiro tauromático
José Maldonado Cortes e reproduzido com
devida vénia do  programa da Grande
Corrida de Toiros comemorativa dos
55 anos de alternativa do Mestre.


Jamais esperei que a vida fosse tão generosa comigo.
Há muito vim ao mundo.
Tive o enorme privilégio de poder dedicar a minha vida, à minha paixão, os cavalos e a Tauromaquia. Por esse mundo tauromáquico deambulei, Portugal, Espanha, França, México, Venezuela, Angola, Moçambique e até na distante e exótica Indonésia, pude tourear. Podia ter feito mais e melhor, no entanto as imperfeições eram muitas e acima de tudo, sempre dei o melhor de mim. Pude compartilhar experiências e conhecimentos adquiridos com muitos jovens que também tiveram o maior dos sonhos "ser toureiro". Juntos aprendemos, juntos evoluímos! José João Zoio, Rui Salvador, Frederico Carolino, José Luís Cochicho, João Cerejo ou o meu filho Francisco, foram alguns deles.
De tudo ficam para além das vivências, os amigos. Esses que a vida me foi colocando no caminho e para sempre ficaram.
Para o fim deixo o melhor do melhor, a família que Deus me deu. Para além da família de berço, uma mulher, dois filhos e cinco netos.
Que mais pode um homem de 79 anos querer no Outono da vida, do que estar rodeado de quem mais ama? 0 meu filho Francisco padecendo do doce veneno da tauromaquia, ambicionou organizar esta corrida para comemorar a longínqua data de 22 Abril de 1962, já lá vão 55 anos...
Não creio merecer tanto desta vida, mas não tive coragem de recusar. Voltar a vestir a casaca da minha alternativa 55 anos depois, para fazer as cortesias, ao lado do meu filho e sobretudo do meu querido neto, Francisco Jr., é para mim uma enorme honra e emoção. 0 meu neto toureará, por mim e para mim, um novilho nesta sua estreia e espero que única comparência nas arenas.
Não posso deixar de referenciar a presença do grande e amigo João Moura também ele acompanhado do seu filho Miguel, e todo o restante elenco que dará cor e emoção à corrida.
Obrigado a todos os que tornarão possível esta noite, que para sempre ficará na minha memória.
José Maldonado Cortes