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quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Inauguração da Exposição "PARAÍSO" de Joana Santos na @arquivolivraria, em Leiria, no sábado, dia 2 de Março

 


Transcrito com a devida vénia da
de 28 de Fevereiro de 2024.


"O paraíso não é um lugar, é uma condição da alma." - Simone Weil

O que é o Paraíso? Onde é o Paraíso? O Paraíso existe?

O Paraíso pode ser um destino final. Um lugar celestial ao qual se chega no final dos dias corpóreos, como uma recompensa. Pode ser um espaço tangível, exótico, perfeito onde a natureza abundante é habitada por seres que vivem em uníssono e onde a felicidade é eterna.

O Paraíso pode ser um espaço que nos habita, que nasce e cresce dentro de nós.

Este é o Paraíso que nasceu das minhas mãos, materializado na delicadeza do grés branco, nos tons azuis e verdes dos cabelos livres das figuras que o habitam, no amarelo ocre das folhas de ginkgo biloba ou no vermelho coração. Uma reflexão sobre o amor, em particular o amor-próprio, vivido no feminino. Uma Ode ao Paraíso como corpo e à sua relação com o mundo físico que o encapsula. Ode também ao mundo interior que se preenche de sentimentos, ideias e tempo.

O Paraíso encontrado no ato da criação, da ideia ao desafio de lhe dar forma usando o barro, tornando físico o meu Paraíso particular e pessoal.

Convido-vos a virem descobrir o meu "Paraíso".

De 2 a 31 de março, na @arquivolivraria, em Leiria. Inauguração, dia 2 de Março, pelas 18h30!

Conto convosco?

Joana Santos


REPORTAGEM FOTOGRÁFICA DA EXPOSIÇÃO













 Hernâni Matos


sábado, 3 de fevereiro de 2024

António Cunhal (1910-1932), artista plástico neo-realista


António Cunhal (1910-1932). Semeador. Desenho a tinta-da-china
sobre cartolina. Assinado e não datado. Colecção particular.


Um Cunhal menos conhecido
ANTÓNIO CUNHAL (1910-1932), natural de Coimbra, faleceu em Lisboa em 1932, vítima de tuberculose e gangrena pulmonar. Filho de Avelino Cunhal (1887-1966) e irmão de Álvaro Cunhal (1913-2005), advogados, políticos, escritores e artistas plásticos neo-realistas.

Artista plástico
Com 21 anos de idade, António Cunhal expôs 26 trabalhos seus no Salão “PINTURAS E DESENHOS DE ANTÓNIO CUNHAL”, patente ao público entre 1 e 15 de Junho de 1931, na prestigiada Papelaria Progresso, situada na Rua do Ouro 151 a 155, em Lisboa.
Nesse salão esteve exposto o desenho aqui reproduzido, pertencente à colecção do Dr. Fernando Abranches Ferrão (1908-1985).
É corrente afirmar-se que o neo-realismo surgiu em Portugal no final dos anos 30. Ora, “O semeador” de António Cunhal é anterior aquela data e eu não tenho dúvida alguma que o conteúdo temático da representação, nos leva a inclui-la no neo-realismo e consequentemente a considerar António Cunhal um artista plástico neo-realista.
António Cunhal está representado no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa e em colecções particulares.

Cinesta de animação
António Cunhal realizou em 1930 com Raul Faria da Fonseca, o filme de animação “A lenda de Miragaia”. O argumento é da autoria de ambos, inspirado no Romanceiro de Almeida Garrett. Baseia-se numa lenda popular que relata como o rei Ramiro II de Leão raptou a princesa moura Zahara e como o seu irmão Alboazar raptou a esposa de Ramiro, a rainha Gaia.
Trata-se do primeiro filme de animação português, recorrendo à técnica inovadora de animação de silhuetas recortadas, as quis foram fotografadas uma a uma para criar o movimento.
O filme, com 400 metros de extensão, era constituído por 24 800 fotogramas, que representavam outros tantos desenhos e movimentos.
“A Lenda de Miragaia”, produção da Ulyssea Film, estreou-se em Lisboa, no Jardim Cinema, a 1 de Junho de 1931.

Epílogo
Talvez a obra de António Cunhal merecesse uma investigação apurada, visando concluir se é ou não um artista plástico neo-realista, tal como eu aqui o proclamo.

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Uma jóia da História Postal de Estremoz


 
Fig. 1

Fig. 2


Prólogo
Há documentos cuja interpretação permite ao investigador catalogá-los na classe das “jóias”. Uma tal inclusão pode ser devida ao teor do seu conteúdo escrito, bem como ao contexto em que este foi produzido, assim como ao grafismo do próprio documento. Pode até acontecer que estas três situações coexistam, o que potencia o valor e o interesse do documento. Vamos ver que é o que se passa com um bilhete-postal ilustrado, pertencente ao meu arquivo de História Postal de Estremoz.

Descrição do bilhete-postal ilustrado
Trata- se de um inteiro postal, mais propriamente um bilhete-postal de Boas Festas do tipo “Tudo Pela Nação,” com selo impresso da taxa de $30 (30 centavos), destinado ao Serviço Nacional, obliterado com a marca do dia da estação dos CTT, do tipo de 1928, do dia 24 de Dezembro de 1942.  O bilhete-postal tem como motivo os Bonecos de Estremoz. A ilustração é de Laura Costa (activa 1920-1950), e o bilhete-postal foi emitido pelos CTT em 1942.
Na parte superior do rosto do bilhete-postal (Fig. 2), a ilustração é constituída por um tradicional “Berço do Menino Jesus” da barrística popular estremocense, o qual se encontra ladeado por dois ramos de azevinho.
No verso do bilhete-postal (Fig. 1) a ilustração representa uma cena no areal da praia da Nazaré e envolve um casal com os seus trajes tradicionais, acompanhados de duas crianças. Aparentam estar a montar no areal a “Adoração dos Reis Magos”, Presépio de 6 figuras, constituído pela Sagrada Família e pelos 3 Reis Magos.
O bilhete-postal ilustrado foi expedido em 24 de Dezembro de 1942 (véspera do Dia de Natal) por Sá Lemos, dirigido ao Dr. Marques Crespo, em Estremoz.

Sá Lemos, o expedidor do bilhete-postal
José Maria de Sá Lemos (1892-1971), escultor, discípulo de Mestre António Teixeira Lopes (1866-1942), começou a trabalhar como professor e simultaneamente Director da Escola Industrial António Augusto Gonçalves, em 21 de Abril de 1932, data da sua tomada de posse, com base no Decreto de 15 de Março de 1932 publicado no Diário do Governo nº 82 – 2ª série de 8 de Março de 1932.
Pela sua acção fez ressurgir os Bonecos de Estremoz, cuja produção tinha cessado com a morte de Gertrudes Rosa Marques (1840-1921) em 1921. Tal ressurgimento foi conseguido recorrendo primeiro à velha barrista Ana das Peles (1869-1945), que foi o instrumento primordial dessa recuperação e depois ao Mestre oleiro Mariano da Conceição (1903-1959) - O “Alfacinha”, o qual foi o instrumento de continuidade dessa recuperação.
No período que esteve em Estremoz e que se prolongou até 30 de Setembro de 1945, foi vereador do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Estremoz entre 1938 e 1945, durante dois mandatos do então Presidente da Câmara, Engº Manuel Bicker de Castro Lobo Pimentel. São de sua autoria a maqueta em barro e em tamanho natural do Monumento aos Mortos da Grande Guerra e da Fonte do Sátiro, ambos em Estremoz.

Marques Crespo, o receptor do bilhete-postal
José Lourenço Marques Guerreiro Crespo (1871-1955), médico, maçon, membro do Partido Republicano Português e Presidente da Câmara Municipal de Estremoz (1923-1926). Foi fundador e director do semanário regionalista “Brados do Alentejo” (1931-1951), fundador da delegação da Cruz Vermelha Portuguesa de Estremoz, membro da comissão fundadora do Teatro Bernardim Ribeiro e Presidente Honorário do Orfeão Tomás Alcaide. Publicou entre outras obras, a monografia “Estremoz e o seu termo regional” (1950).

Estremoz doutros tempos
O facto de o bilhete-postal ter sido expedido apenas na véspera de Natal, também merece alguma reflexão. Decerto que o remetente sabia que no dia de Natal não havia distribuição domiciliária de correspondência, pelo que a missiva só seria recebida já depois do Natal. O que é que o terá levado a expedir o bilhete-postal postal só na véspera de Natal? Não sei. Todavia, posso admitir como plausíveis duas circunstâncias: – A chegada tardia à estação dos CTT de Estremoz, deste tipo de bilhete-postal de Boas Festas: o nº 42 (preparação do Presépio) de uma série de 12, numerados de 35 a 46, todos com ilustração de Laura Costa e ostentando o mesmo tipo de selo impresso; - O conhecimento tardio por parte do remetente da existência do bilhete-postal nº 42 (preparação do Presépio).
O endereço do destinatário resume-se ao nome deste e não inclui o nome do arruamento nem o número de porta. Para este facto contribuíram, decerto, factores como: - O destinatário ser uma personalidade com destaque na sociedade local e por isso muito conhecido; - O número de arruamentos ser muito inferior ao que é na actualidade; - O brio profissional dos carteiros que os levava a empenhar-se na missão de “levar a carta a Garcia”.

Epílogo
Sá Lemos considerara recuperada a produção de Bonecos de Estremoz em artigo publicado no jornal Brados do Alentejo, em 10 de Novembro de 1935. Ainda nesse mesmo ano, os Bonecos de Ana das Peles participaram na “Quinzena de Arte Popular Portuguesa” realizada na Galeria Moos, em Genebra. Em 1936 estiveram presentes na Secção VI (Escultura) da Exposição de Arte Popular Portuguesa, em 1937 na Exposição Internacional de Paris e em 1940 na Exposição do Mundo Português. Nesta exposição estiveram também expostos os Bonecos de Estremoz de Mestre Mariano da Conceição, os quais no pavilhão expositor eram pintados por sua mulher Liberdade da Conceição (1913-1990), face à impossibilidade de Mestre Mariano estar presente por ser funcionário público.
Os Bonecos de Estremoz adquiriram notoriedade pública e projecção internacional com a Exposição do Mundo Português em 1940, de tal modo que os CTT os utiliza como motivo dos bilhetes-postais de Boas Festas de 1942. Deve ter sido uma suprema felicidade para Sá Lemos, que através do bilhete-postal endereça "um abraço de Boas Festas" ao seu amigo Marques Crespo, o qual através da missiva pôde constatar que os Bonecos de Estremoz andavam a ser divulgados pelos CTT através de mensagens natalícias.
Não há dúvida que a mensagem, bem como o seu contexto e o grafismo, legitimam completamente o título escolhido para o presente texto.

Hernâni Matos

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Entrevista sobre o 25 de Abril, concedida ao jornal E, de Estremoz

 


Hernâni Matos: “Foi assim até ao fim do dia, sempre com a sensação de até respirar melhor”

No ano em que se cumprem 50 anos sobre o 25 de Abril de 1974, o E’ associa-se às comemorações desta que é uma data tão importante da história do país. As memórias da Revolução dos Cravos também são feitas das memórias individuais daqueles que viveram essa experiência única. Registamos hoje a voz de Hernâni Matos, numa primeira entrevista com que assinalamos os 50 anos do 25 de Abril.

Quais as memórias mais fortes que tem do Estado Novo?

A NÍVEL DE INFÂNCIA: - O aglomerado de pobres a pedir esmola à porta da Igreja de São Francisco, à saída da missa de domingo; - Os pobres que nas segundas-feiras percorriam os estabelecimentos comerciais a pedir esmola; -  A constatação de que havia crianças que iam descalças para a escola, porque os pais não tinham dinheiro para lhes comprar sapatos; - A existência de um ensino repressivo que a nível da instrução primária permitia que um professor desse reguadas nas mãos, canadas na cabeça ou puxões de orelhas numa criança, só porque estava desatenta, era irrequieta ou porque não sabia a lição; A NÍVEL DE JUVENTUDE: - Um indigente que nos anos 50 foi a enterrar para o cemitério de Estremoz, transportado na carroça do lixo; - O ambiente carregado das cerimónias do 10 de Junho em Lisboa, onde as mulheres e as mães dos mortos em combate na Guerra Colonial iam receber condecorações a título póstumo. DE ÂMBITO PESSOAL: - O aviso telefónico que foi feito ao meu pai em 1958, no dia das eleições para a Presidência da República, para não se dirigir para a assembleia de voto de S. Lourenço, na qualidade de delegado da candidatura do General Humberto Delgado, uma vez que estava lá a PIDE para o prender; - Uma carga da PIDE em 1968, na qual me vi envolvido, após a proibição da exibição do filme Marcha sobre Washington e um debate subordinado ao tema Quem matou Martin Luther King?, na Paróquia de Santa Isabel, em Lisboa; - A proximidade diária de gorilas, que eram ex-militares das tropas especiais (comandos ou pára-quedistas), contratados como polícias internos das faculdades e cuja função era identificar, vigiar, perseguir, impedir ajuntamentos e espancar estudantes; - O cuidado e as precauções que tinha com aquilo que dizia, ao falar publicamente com alguém, não se fosse dar o caso de haver bufos (informadores) na vizinhança, que me fossem denunciar à polícia política, a PIDE/DGS; - O meu ingresso na carreira docente em 1972, o qual envolveu a chamada ao gabinete do Chefe da Secretaria da Escola, onde tive que jurar e de subscrever com a minha assinatura, a declaração formal exigida pelo famigerado Decreto-lei 27003, de 14 de Setembro de 1936 e cujo teor era o seguinte: “Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas.” Lá tive que mentir, pois embora não fosse comunista era democrata, o que correspondia a perfilhar ideias subversivas no Estado Novo, regime de partido único: a UN - União Nacional.

Esteve na Universidade ainda nos tempos da ditadura? Sentiu ou viveu a luta estudantil? Tinha, ao tempo, alguma intervenção ou acção política?

Ingressei na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa em 1965, pelo que não me vi já envolvido na Crise Académica de 1962, mas não escaparia à Crise Académica de 1969. Era um jovem de espírito aberto, generoso e humanista, ávido de liberdades civis que me eram negadas pelo regime, o que me levava a questionar o sistema e a resistir. Foi assim que ingressei naturalmente no Movimento Associativo da Faculdade de Ciências de Lisboa, o qual contestava o autoritarismo do Estado Novo e reivindicava direitos civis. Lutávamos pela liberdade de expressão e de associação, pela autonomia universitária e a democratização do ensino, pelo fim da repressão e da guerra colonial. Como activista de base do Movimento Associativo da FCUL, integrei a IMPROP – Secção de Imprensa e Propaganda, participei nalgumas RIA – Reunião Inter-Associações, greves às aulas e ocupações da Cantina da Faculdade. Fui uma entre muitas outras formiguinhas que anonimamente e em contexto universitário, deram o seu modesto, mas indispensável contributo a nível civil para que no dia 25 de Abril de 1974 pudesse ocorrer uma mudança de paradigma.

Nas eleições legislativas de 1969, na qualidade de activista da CDE – Comissão Democrática Eleitoral, fui delegado da candidatura desta Comissão junto de uma das mesas da assembleia de voto que funcionou na Faculdade de Ciências de Lisboa. As eleições viriam a ser ganhas pela UN - União Nacional, liderada por Marcelo Caetano. Era um desfecho previsível, já que a campanha e o acto eleitoral ficaram assinalados, pela fraude, pela perseguição e intimidação da Oposição.

Sentiu, na altura que a ditadura tinha os dias contados?

Apesar da repressão que há muito se vinha abatendo e intensificando sobre as lutas operárias, camponesas, estudantis e dos trabalhadores de serviços, estas também se vinham intensificando. Por outro lado, o Levantamento Militar das Caldas da Rainha de 16 de Março de 1974, apesar de gorado, deu a sensação de que era o prenúncio de uma futura insurreição militar vitoriosa. Parece que havia um “cheirinho no ar” a indiciar que tal viria a acontecer. De facto, lá diz o rifão Agua mole em pedra dura, tanto dá até que fura” e foi assim que os militares aperfeiçoaram o plano e a organização de um novo levantamento, com a devida articulação entre as unidades envolvidas. À segunda foi de vez. Em 25 de Abril de 1974, os militares não falharam.  Bem hajam por isso!

Onde estava no dia 25 de Abril de 1974? Como soube da Revolução? Lembra-se do que fez nesse dia?

Estava adoentado e encontrava-me em casa. Só ao final da manhã tive conhecimento do que se passara em Lisboa e da participação do RC3. Saí imediatamente para a rua, ávido de notícias.  A maioria das pessoas estava eufórica. Todavia também encontrei pessoas apreensivas, com temor daquilo que poderia vir a acontecer. Eu também fiquei eufórico e sempre que me cruzava com alguém com quem tinha mais confiança, lá proferia um “Porra! Até que enfim!”, invariavelmente acompanhado dum aperto de mão ou um abraço ou ainda uma pancada nas costas. O “V” da vitória e o punho erguido só surgiriam mais tarde. E foi assim até ao fim do dia, sempre com a sensação de até respirar melhor. Eram os ares da liberdade que nos tinha sido restituída pelo Movimento dos Capitães. Como reconhecimento e sinal de gratidão, nasceu-nos espontaneamente nos lábios, a palavra de ordem O povo está com o MFA!” e assim seria durante muito tempo.

Olhando para trás, que avaliação faz do processo de transição da ditadura para a democracia que tivemos em Portugal?

A avaliação dessa transição, obriga-me a falar dos responsáveis por essa transição: as Forças Armadas Portuguesas.

O derrube da ditadura mais velha da Europa – o regime de Salazar e de Caetano - foi conseguido em 25 de Abril de 1974, graças à acção militar coordenada do MFA - Movimento das Forças Armadas, cuja origem remonta ao clima de instabilidade no interior das próprias Forças Armadas, particularmente do Exército, instabilidade essa que se manifestou em meados de 1973, com o surgimento do denominado Movimento dos Capitães, o qual aglutinava oficiais de média patente, insatisfeitos com as suas remunerações e com a perda de prestígio da oficialidade do quadro permanente, bem como com a Guerra Colonial que, desde 1961, ou seja, há 13 anos, se arrastava em 3 frentes, sem se antever uma solução política para a mesma, bem como pela previsibilidade de uma derrota militar iminente.

No seu poema “As portas que Abril abriu!”, o saudoso poeta José Carlos Ary dos Santos, diz-nos quem fez o 25 de Abril de 1974: “Quem o fez era soldado /homem novo Capitão /mas também tinha a seu lado /muitos homens na prisão.” E mais adiante: “Foi então que Abril abriu / as portas da claridade /e a nossa gente invadiu / a sua própria cidade.

A chamada Revolução dos cravos desencadeada pelo MFA, teve o apoio massivo da população e o regime foi derrubado praticamente sem derramamento de sangue. A transição pacífica de Portugal de uma ditadura para uma democracia teve repercussões a nível internacional, pois foi vista como um exemplo positivo, influenciando assim sucessivos processos de democratização que se desenvolveram por esse mundo fora.

Que impacto teve a Revolução dos Cravos na sua vida?

Em 1º lugar senti uma grande alegria por sentir que tinham sido quebrados os grilhões que me aprisionavam e que impediam de me sentir um cidadão de corpo inteiro. Em 2º lugar tive a percepção de que era imperativo que o movimento revolucionário do 25 de Abril nos permitisse usufruir de direitos e liberdades que até então nos tinham sido negadas, para o que haveria decerto que lutar, tal como veio a acontecer. Em 3º lugar, intuí que o usufruto desses direitos e liberdades, teria que ser temperado através da assunção de deveres que regulassem o exercício da cidadania.

Um pouco por toda a parte, assumimos o direito à liberdade, à informação e à greve. Arrogámos o direito de reunião, de manifestação, de participação na vida pública e de voto. Reclamámos e conquistámos entre outras, múltiplas formas de liberdade: de expressão e informação, de imprensa, de criação cultural, de aprender e ensinar, de associação, sindical, que mais tarde viriam a ser consignadas na Constituição da República Portuguesa.

O 25 de Abril não me trouxe só alegria pelos motivos apontados, mas também por melhorias nas condições de vida dos portugueses que então ocorreram: aumento dos rendimentos, das oportunidades de aprendizagem, da liberdade e dos direitos das mulheres, bem como melhoria do acesso aos cuidados de saúde e uma mudança de valores que tornaram a sociedade mais aberta, o que teve reflexos a nível da cultura (literatura, artes plásticas, música, teatro, cinema, televisão).

Como foi para si o período que se seguiu à Revolução?

O período pós-25 de Abril, conhecido por PREC - Processo Revolucionário em Curso foi marcado por lutas por melhores de condições de vida de operários, assalariados agrícolas e trabalhadores de serviços, assim como de moradores pelo direito à habitação. Foi um período em que ocorreram nacionalizações, inúmeras manifestações, assim como ocupações de fábricas, herdades e casas. Tratou-se de uma época de grande agitação social, política e militar, caracterizada por intensos debates de âmbito político, económico, social e cultural, bem como confrontos militares entre sectores das Forças Armadas com visões distintas de modelos de sociedade a seguir. Os maiores desses confrontos ocorreram a 11 de Março e a 25 de Novembro de 1975. Nesse período há a assinalar a existência de 6 Governos Provisórios até à constituição do 1º Governo Constitucional liderado por Mário Soares (PS), com base nos resultados das eleições de 25 de Abril de 1976, realizadas após a aprovação da Constituição da República Portuguesa, a 2 do mesmo mês. É com a constituição do 1º Governo Constitucional que se completa a devolução do poder pelos militares aos representantes da sociedade civil, legitimados pelo sufrágio, conforme estava previsto no Programa do MFA

Teve, nessa altura, alguma militância ou intervenção política?

Logo a seguir ao 25 de Abril e em termos cívicos integrei comissões had hoc que iam surgindo, fruto da dinâmica social que se ia gerando: Comissão de vigilância de preços, Comissão de moradores da zona centro, Comissão coordenadora das comissões de moradores, Comissão pró-construção do parque infantil, Comissão Cultural de Estremoz, Comissão de Base de Saúde. A nível sindical fui delegado sindical dos professores na Escola Secundária de Estremoz.

A nível político, desde 1969 e ainda estudante universitário em Lisboa, que me identificava com a CDE - Comissão Democrática Eleitoral, liderada por Francisco Pereira de Moura, pelo que após o 25 de Abril passei a frequentar a sede desde Movimento em Estremoz, participando aí nos debates internos e nas dinâmicas então em curso. Fui um entre muitos outros. Por ali passaram activistas que mais tarde se iriam integrar em partidos: PCP, UDP, MES, PS e PSD. Quando em 1975 a CDE se transformou em MDP/CDE – Movimento Democrático Português / Comissão Democrática Eleitoral e se registou como partido, eu não me filiei, uma vez que me já me filiara no PCP – Partido Comunista Português, ainda em 1974, se bem me lembro por influência do meu grande amigo, Aníbal Falcato Alves. Acontece que a certa altura tive consciência de que não reunia condições pessoais para ser militante daquele partido, cujo passado de luta e de resistência me merecia o maior respeito, pelo que saí nos primeiros meses de 1975. Passei então à condição de independente, condição que mantive até integrar a UDP – União Democrática Popular em meados de 1975, desta feita por influência do meu colega e amigo, Albano Martins. Deste partido fui militante enquanto a estrutura organizativa local esteve activa. Em 1993 e a convite do futuro Presidente da Câmara Municipal de Estremoz, o independente e meu amigo José Dias Sena, integrei como independente as listas da CDU – Coligação Democrática Unitária, sendo eleito como deputado municipal, cargo que desempenhei empenhada e activamente durante 3 mandatos, até que senti que era chegada a altura de passar o testemunho, para ter uma maior disponibilidade de intervenção na frente cultural, a qual desde sempre foi e continua a ser a minha grande motivação.

E que avaliação faz da democracia que temos na actualidade?

A democracia portuguesa é uma democracia estável cuja arquitectura tem por base a Constituição da República Portuguesa, lei suprema do país, aprovada em 1976 e revista 7 vezes desde então. Os órgãos de soberania são eleitos, existindo separação e interdependência dos seus poderes. Formalmente está tudo bem. Na prática não é bem assim.

Qual o estado da democracia em Portugal?

A democracia portuguesa sofre de problemas graves que urge resolver em múltiplos domínios: social, económico, financeiro, etc. Deles destaco: elevada abstenção nos actos eleitorais, corrupção, demora na aplicação da Justiça, desemprego, trabalho precário, fraca qualificação da mão de obra, baixa produtividade, salários e pensões muito baixos, falta de oferta pública de habitação, especulação imobiliária, elevada emigração jovem, baixa taxa de natalidade, envelhecimento da população, insuficiência de cuidados dignos na velhice, Serviço Nacional de Saúde com enormes carências, problemas graves a nível da Educação e do Ensino, falta de coesão social e territorial. Estes são os principais problemas que de uma forma ou de outra, atormentam diariamente a esmagadora maioria das pessoas.

50 anos depois do 25 de Abril, apesar da melhoria das condições de vida dos portugueses, ainda se nos deparam desafios a enfrentar para que possa ser assegurada a igualdade de género e a justiça social. Em democracia, isto só se consegues através do aperfeiçoamento da própria democracia. É uma tarefa e um repto que estão em aberto e que exigem o maior empenhamento de todos os cidadãos. 

Hernâni Matos

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Poesia portuguesa - 104




Bonecos de Estremoz
Maria de Santa Isabel (1910-1992) [i]

 

Bonequinhos de barro de Estremoz!
Floridas cantarinhas! Primaveras!
Figuras dum presépio de quimeras!
Quem foi que lhes deu vida no meu sonho?
Eterna fantasia cor de luz,
Milagre suavíssimo, risonho,
Do Menino Jesus…

Horas da minha infância, luminosas,
Da minha crença infinda…
Que até mesmo nas sombras dolorosas
Me iluminam ainda!

- Pelos campos de musgo vão subindo,
Em marcha vagarosa,
Pastores e rebanhos! Sonho lindo,
De quando a nossa vida é cor de rosa!
Um mundo de brinquedos, de alvo encanto,
O mundo em que eu vivi,
De quando sempre em nós é dia santo
E tudo nos sorri!

Lá vão os Reis Magos,
De olhos fitos na estrela que rebrilha,
Reflectindo no espelho azul dos lagos,
A sua luz, doirada maravilha!
Estrelinha anunciando milagrosa
A vida do Menino…
No céu da tela, vibra, luminosa,
Com um fulgor divino!
E, no presépio, além,
O nosso Bom Jesus de olhar profundo…
São José… Sua Mãe:
Eis o poder do Mundo!

Cenário de ilusões! Ainda, agora,
De olhos ardentes, vou fitar-te em vão…
Não sinto em mim aquela paz de outrora…
Mas deixa-me sonhar o coração!

Maria de Santa Isabel (1910-1992)



[i] Pseudónimo literário de Maria Palmira Osório de Castro Sande Meneses e Vasconcellos Alcaide, poetisa estremocense. OBRA POÉTICA: - Flor de Esteva (1948); - Solidão Maior (1957); - Terra Ardente (1961); - Fronteira de Bruma (1997); - Poesia Inédita (A editar). Casada com Roberto Augusto Carmelo Alcaide (1903-1979), 1979), autodidacta, caricaturista, maquetista, cenógrafo, dramaturgo e comerciante.
Maria Palmira, pessoa dotada de rara sensibilidade, coleccionava Bonecos de Estremoz e tinha uma colecção de 104 figuras de finais do séc. XIX – princípios do séc. XX, que por sua vontade expressa foram doadas em 2004 ao Museu Municipal de Estremoz, por sua sobrinha Isabel Maria Osório de Sande Taborda Nunes de Oliveira, professora e ex-vereadora do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Estremoz (1986-1990).
A poesia de Maria de Santa Isabel está disponível no blogue Maria de Santa Isabel : https://mariadesantaisabel.blogspot.com/

Publicado inicialmente a 4 de Janeiro de 2024

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Poesia portuguesa - 103

 


Natal é quando um homem quiser
Ary dos Santos (1936-1984)


Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão

O Natal é quando um Homem quiser!

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e comboios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

Ary dos Santos (1936-1984)

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Vera Magalhães recebeu o Certificado de Artesã Produtora de Bonecos de Estremoz

 

A barrista Vera Magalhães ladeada pelo  Presidente do Município, José Daniel Sadio
pelo Presidente da Assembléia Municipal, Ricardo Catarino.
 Fotografia de Município de Estremoz.

Teve lugar ontem no Salão Nobre dos Paços do Concelho de Estremoz, uma Sessão Comemorativa do 6.º aniversárioda Inscrição da Produção de Figurado em Barro de Estremoz na ListaRepresentativa de Património Cultural Imaterial da UNESCO.

No decurso da cerimónia foi entregue à barrista Vera Magalhães, o Certificado de Artesã Produtora de Bonecos deEstremoz, que lhe foi outorgado pela Adere-CERTIFICA, entidade credenciada para conceder aquela certificação.

Anteriormente, a barrista Vera Magalhães frequentou um “Curso de Formação sobre Técnicas de Produção de Bonecos de Estremoz”, que entre 20 de Setembro a 6 de Dezembro de 2019, teve lugar no Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte, em Estremoz. O Curso foi promovido pelo CEARTE – Centro de Formação Profissional para o Artesanato e Património, em parceria com o Município de Estremoz. O Curso com a duração de 150 horas e de Nível QNQ 2, teve formação técnica a cargo do barrista Jorge da Conceição. Foi frequentado por 16 formandos, dos quais até à presente data, 4 foram certificados pela Adere – CERTIFICA, como artesãos produtores de Bonecos em Barro de Estremoz.

Mais recentemente, a barrista teve a Exposição “TRADIÇÃO E CULTURA - Bonecos de Estremoz de Vera Magalhães” patente ao público no Centro Interpretativo do Boneco de Estremoz, entre os dias 9 de Setembro e 26 de Novembro.



quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Aconteceu há 6 anos: Inscrição da Produção de Figurado em Barro de Estremoz na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade

Parte da delegação portuguesa que se deslocou à República da Coreia. Da esquerda
para a direita: Luís Mourinha (Presidente da Câmara Municipal de Estremoz), Manuel
António Gonçalves de Jesus (Embaixador de Portugal na República da Coreia), António
Ceia da Silva (Presidente do Turismo do Alentejo) e Hugo Guerreiro (Director do Museu
Municipal de Estremoz e Responsável Técnico da Candidatura). Fotografia reproduzida
com a devida vénia, a partir do Facebook de António Ceia da Silva.


Importa aqui e mais uma vez, salientar o mérito daqueles a quem se deve o êxito de uma candidatura que se viria a tornar vitoriosa:
1º) Hugo Guerreiro, Director do Museu Municipal de Estremoz, que despoletou e argumentou a candidatura, a qual veio a ter êxito e que corresponde ao primeiro figurado do mundo a merecer a distinção de Património Cultural Imaterial da Humanidade.
2º) Os barristas do passado e do presente, que com o labor e criatividade das suas mãos mágicas e desde as bonequeiras de setecentos, transmitiram de geração em geração e até à actualidade, uma produção sui generis de Bonecos em barro, dita ao “modo de Estremoz”.
3.º) O escultor José Maria de Sá Lemos, que nos anos 30 do séc. XX e recorrendo à velha bonequeira Ana das Peles primeiro e ao Mestre oleiro Mariano da Conceição depois, deu um contributo decisivo para a revitalização da produção de Bonecos de Estremoz, considerada extinta desde 1921.
4º) Os estudiosos, investigadores, escritores e publicistas que com o seu esforço não deixaram morrer a memória dos Bonecos de Estremoz: Luís Chaves, D. Sebastião Pessanha, Virgílio Correia, Azinhal Abelho, Solange Parvaux, Joaquim Vermelho e outros.
5.º) Os coleccionadores, dos quais o mais destacado é Júlio dos Reis Pereira, que ao longo de décadas foram reunindo, catalogando, estudando, comparando e interpretando espécimes que viabilizaram a apresentação de uma candidatura pelo Município de Estremoz.
- BEM HAJAM!

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Lançamento do livro "O Motorista dos Cortes/Histórias da minha terra" de José Domingos Ramalho

 


Transcrito com a devida vénia de
newsletter do Município de Estremoz,
de 29 de Novembro de 2023

Dia 9 de dezembro, pelas 15:30 horas, o Museu Berardo Estremoz vai receber o lançamento do livro "O Motorista dos Cortes/Histórias da minha terra", de José Domingos Ramalho.
Depois de “O Ameixa tem Uma Filha”, – Edição da 5 Livros – 2022, José Domingos Ramalho, volta a escrever sobre a vida das gentes e paisagens humanas do Alentejo.
Mestre em Recursos Humanos e Desenvolvimento Sustentável e Licenciado em Sociologia, é co-autor da obra Diagnóstico Social: Teoria, metodologia e casos práticos - Edição Sílabo 2017.
O autor dedica parte da sua vida ao estudo da grafologia e é conhecida a sua paixão pela cultura, gastronomia e etnografia alentejana.
Venha conhecer duas histórias das gentes alentejanas, num só livro!
A entrada para a iniciativa é gratuita.

Sinopse
O Motorista dos Cortes
Entre a primeira e a segunda guerra mundial, uma família tradicional alentejana, trouxe ao mundo sete raparigas e dois rapazes.
No dia em que uma das filhas engravidou e o parceiro não quis assentar-se como pai, a vida da família mudou radicalmente.
A rapariga passou à condição de mulher escondida e o rapaz refugiou-se na Lisboa castiça, boémia e fadista.
Ao fim de vinte anos de destinos separados, será a filha de ambos, já em idade adulta, a promover a união dos progenitores, mas a estória pode ter um desfecho inesperado.



quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Lúcia Cóias partiu. Fica a saudade.



Lúcia Cóias (1934 - 2023)

A última viagem
Por mais sedentários que sejamos, todos nós somos nómadas. Ao longo da vida, vivamos onde vivamos, todos nós somos impelidos a viajar no espaço e no tempo. É como se fossemos templários à procura do Santo Graal. Só que a busca agora é outra e mais diversificada. À procura da espiritualidade, da beleza interior e da verdade, juntam-se agora outras necessidades de procura, de natureza material: trabalho, condições de vida, formação académica ou profissional, amor, paz, divertimento e muito mais que se poderia aqui enumerar. São necessidades que se traduzem em viagens, que temos o livre arbítrio de realizar ou não, se assim nos der na real gana. Todavia, para além destas viagens, há uma outra de natureza diferente, inescapável e com desfecho único, já que é uma viagem sem retorno, independente do nosso livre arbítrio. É a viagem que se inicia quando se transpõe a última etapa da vida e se diz que alguém morreu ou partiu. É uma viagem sobre a qual existem múltiplas interpretações, entre elas a da antropologia bíblico-cristã, mas qualquer delas ultrapassa o âmbito dos propósitos da presente abordagem textual.

Morreu a Lúcia da Singer!
Morreu a Lúcia da Singer! Foi uma notícia que correu célere em Estremoz, no passado dia 18 de Novembro e que me tocou particularmente. É que eu conhecia bem a Lúcia Cóias, seguramente há 70 anos, para além de ser amigo pessoal de seu filho Paulo Cóias e de ter sido professor de sua filha Cristina Cóias, bem como amigo pessoal de sua irmã, a poetisa Constantina Babau.
A Lúcia foi empregada da Singer em Estremoz, onde durante largos anos foi competente professora de costura, que marcou gerações e gerações de jovens mulheres. Tratou-se de uma actividade que, após a aposentação, prosseguiu com êxito na Academia Sénior de Estremoz, onde era muito estimada por todos os membros, sentimento partilhado, de resto, pela generalidade da comunidade local.

Poetisa do amor e da saudade
Como poetisa, Lúcia Cóias (1934-2023), é autora dos livros “Poesia Popular” (2015), “Rosas Brancas” (2016) e "Madrugada" (2018). No primeiro destes livros, em “Infância perdida” confessa: “Sem mãe fiquei aos três anos / E sofri horrores tamanhos / Num mundo que não era o meu / Senti-me sempre perdida / Sem alegrias na vida / E ela partira p’ro céu”. Lúcia ao perder a mãe, foi internada e criada no Asilo de Infância Desvalida João Baptista Rolo, em Estremoz, onde o internato gerido por freiras, a marcou para toda a vida. Ainda em “Infância perdida” confessa: “Tantas torturas passadas / Que não devem ser contadas / Pois ainda creio em Deus / Não sei bem porque razão / Vou dar-lhes o meu perdão / E os soluços ficam meus”.
Lúcia cresceu, fez-se mulher, casou e teve dois filhos. Todavia, perdeu o marido prematuramente, de tal modo que em “Saudade”, começa por se dirigir a ele nos seguintes termos: “Ó meu amor que agonia / Partiste naquele dia / Partiste p´ra não voltar / Meu coração está desfeito / Ficou-me esta dor no peito / Quase ceguei de chorar”. Termina o poema dizendo: “Sei que tu já estás nos céus / Lá bem pertinho de Deus / Se é que a outra vida existe. / Olha bem p’los teus filhinhos / Guia-os por bons caminhos / Consola a minha alma triste”.
O amor de mãe transborda no poema “Ao meu filho”: “A ti meu filho eu dedico esta poesia / Pelo milagre que o amor em mim te fez / Pois tu me deste a santa alegria / De ser mãe pela primeira vez”. O mesmo sentimento maternal transvasa igualmente no poema “À minha filha”: “Obrigada minha filha, eu te adoro / Pelo amor e carinho que me deste / Perdoa se estou triste e às vezes choro, / Tu sabes o que é dor pois já sofreste”.

O amor ao próximo
Na poesia de Lúcia Cóias, o amor não se se circunscreve à família. É mais vasto e assume, em particular, a forma de amor ao próximo. É o que nos revela o poema “Amar sem olhar a quem”, onde no final nos diz que: “Dar amor, dia após dia / Sem olhar à diferença / Não é loucura é magia / De quem tem alma e tem querença” e acrescenta: “Esta é a ventura maior: / Em cada ser ver um irmão. / É viver para dar amor / É ser alguém de eleição.” O amor ao próximo é um amor preocupado, como nos revela no final do poema “Oração”: “Que mágoa sinto em meu peito / Quando à noitinha me deito / Numa cama agasalhada / Lembro a Deus com muito afecto / Aqueles que não têm tecto / E dormem num vão de escada.”

Lúcia Cóias presente!
Lúcia Cóias partiu, mas deixou connosco uma enorme saudade, partilhada entre a família, os amigos e todos os que com ela conviveram. Deixou-nos igualmente a mensagem do seu exemplo de vida, da sua vontade de viver e de lutar contra a adversidade, bem como o seu legado de amor a Deus, à família e ao próximo. Por isso, Lúcia Cóias perdurará nas nossas memórias e nos nossos corações.

Publicado no jornal E, n.º 322, de 23 de Novembro de 2023

Em 2017, Lúcia Cóias participou na iniciativa Poetas em defesa da olaria de Estremoz”, desenvolvida pelo blogue “Do Tempo da Outra Senhora”, publicando o poema:

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

18 de Novembro, às 15:30, no Museu Berardo Estremoz: “António Telmo em Estremoz”


António Telmo (1927-2010). Fotografia de João Albardeiro (1951-2004).

António Telmo em Estremoz  

Dar a conhecer a vida, a obra e o pensamento de António Telmo, filósofo e escritor que durante três décadas viveu e leccionou em Estremoz, é o propósito da sessão “António Telmo em Estremoz”, que se realiza no Museu Berardo Estremoz no próximo dia 18 de Novembro, sábado, a partir das 15:30, numa parceria da Câmara Municipal deEstremoz com o Projecto António Telmo. Vida e Obra. 

A abrir a sessão terá lugar a apresentação, por Elísio Gala, ensaísta e professor de Filosofia na Escola Secundária do Redondo, do livro A Glória da Invenção – Uma aproximação aopensamento iniciático de António Telmo, de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, recentemente editado pela Zéfiro, que é também a chancela que publica as Obras Completas de António Telmo. Mara Rosa lerá alguns excertos da obra.

Depois, António CândidoFranco, escritor e professor da Universidade de Évora, fará uma intervenção sobre António Telmo.

Por fim, uma mesa-redonda moderada por Pedro Martins, e que conta com a participação de Elísio Gala, Hernâni Matos, Ilídio Saramago, João Fortio, João Tavares, José Capitão Pardal e Paula Capelinha dará a conhecer, entre outras vertentes, a relação do cidadão, do escritor, do professor ou do bilharista com Estremoz e com outras terras da região, igualmente marcantes na sua vida e na sua obra.

Durante a sessão, estarão à venda obras de António Telmo ou sobre António Telmo e temáticas afins, editadas pela Zéfiro.  

António Telmo - Nota biográfica

António Telmo Carvalho Vitorino nasceu em Almeida em 2 de Maio de 1927, vindo a falecer em Évora em 21 de Agosto de 2010. Licenciado em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, dedicou-se profissionalmente ao magistério, leccionando em Beja, Évora, Sesimbra (onde foi também o primeiro director da Biblioteca Municipal), Redondo (onde, no início da década de 70 fundou, instalou e dirigiu a Escola Preparatória – nas suas palavras «a primeira escola democrática em Portugal, ainda antes do 25 de Abril») e Estremoz, onde, na década de 80, se viria a radicar. 

Foi um dos filósofos mais audazes, originais e fecundos de Portugal. Discípulo de Álvaro Ribeiro, José Marinho, Eudoro de Sousa e Agostinho da Silva (a convite dos dois últimos, durante cinco semestres, entre 1966 e 1968, ensinará Latim e Literatura Portuguesa na Universidade de Brasília), António Telmo desenvolveu ao longo de várias décadas um pensamento da razão poética, num diálogo constante entre a poesia e a filosofia, o símbolo e a ideia, a imaginação e a inteligência – em suma, entre a alma e o espírito.

Hermeneuta pioneiro e genial, a este intrépido livre-pensador religioso, que restituiu ao esoterismo o seu direito de cidade no pensamento português da segunda metade do século XX, se ficou a dever, na História Secreta de Portugal, a subtil decifração, à luz da gnose templária, dos medalhões simbólicos do Claustro do Mosteiro dos Jerónimos; e, outrossim, a desocultação da obra poética de Luís de Camões, sobretudo de Os Lusíadas – sem esquecer o subtil diálogo de aprofundamento e desvendamento que estabeleceu com o corpus poético e teorético de Fernando Pessoa. Por outro lado, com a sua Gramática Secreta da Língua Portuguesa, António Telmo demonstrou, segundo uma dedução cabalística dos fonemas conforme às estruturas da árvore sefirótica, a natureza de língua sagrada do idioma pátrio.

Na senda de seu mestre Álvaro Ribeiro, que via na filosofia portuguesa uma confluência sintetizadora das três religiões abraâmicas, António Telmo, descendente de gente de nação, chama a atenção para a existência, entre nós, de um subconsciente hebraico, fruto do recalcamento a que mais de dois séculos de manifesto terror inquisitorial haveriam fatalmente de nos conduzir. Deste modo, o filósofo reelabora a kabbalah judeo-cristã à luz de um marranismo de que toma progressiva consciência e que irá porventura culminar na sua iniciação maçónica, a que estará subjacente um propósito de rectificação da Arte Real já aflorado na História Secreta de Portugal, mas bem patente nas derradeiras obras do filósofo.

António Telmo deixou colaboração esparsa por inúmeros jornais e revistas, entre os quais se destacam o Diário de Notícias, o 57 ou a Espiral. Além do ensaio, a sua obra abarca ainda a ficção, a dramaturgia e a poesia, géneros literários que só episodicamente cultivou, mas sempre com uma evidente preocupação filosofal. Entre os títulos da sua biografia, contam-se os seguintes livros: Arte Poética (1963); História Secreta de Portugal (1977; reed. 2013); Gramática Secreta da Língua Portuguesa (1981); Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões (1982); Filosofia e Kabbalah (1989); O Bateleur (1992); O Horóscopo de Portugal (1997); Contos (1999); Viagem a Granada (2005); A Hora de Anjos Haver (2007); A Verdade do Amor, seguido de Adoração, de Leonardo Coimbra (2008); Congeminações de um Neopitagórico (2009); O Portugal de António Telmo (2010); A Aventura Maçónica (2011); Sesimbra, o lugar onde se não morre (2011).

Em 2021 foi publicado em França Philosophie et Kabbale, tradução em francês do livro Filosofia e Kabbalah, com o selo de Éditions de La Tarente, prefácio de Sylvie e Rémi Boyer e ilustrações de Lima de Freitas.

As suas Obras Completas estão em curso de publicação na editora Zéfiro, com o apoio institucional e científico do Projecto António Telmo. Vida e Obra.

Texto da responsabilidade do Projecto António Telmo. Vida e Obra

 Hernâni Matos

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Uma Primavera de Mestre Jorge da Conceição

 

Fig. 1 - Primavera (aspecto frontal). Mestre Jorge da Conceição (1963 - ).


É sabido que colecciono Bonecos de Estremoz produzidos por todos os barristas, independentemente da época e do tema. E faço-o, por entender que não há uma maneira única de os produzir, já que cada barrista tem o seu próprio estilo e as suas próprias marcas identitárias, fruto de circunstâncias diversas, as quais me dispenso de analisar aqui. No acto de criação, apenas é exigido ao barrista que respeite a técnica de produção e a estética do Boneco em barro vermelho de Estremoz.
A minha colecção, apesar de invejada por muitos, apresenta alguns “calcanhares de Aquiles”. Um deles é não integrar como eu gostaria, um número julgado apropriado e representativo da produção de Mestre Jorge da Conceição. Daí que eu tenha resolvido tratar este calcanhar, o que me levou tempos atrás a encomendar-lhe algumas figuras. A primeira a ser-me entregue foi uma Primavera (Fig. 1 e Fig. 2), que de imediato, despertou em mim uma emoção que iria desembocar na redondilha maior que então compus:

Aquece-me o coração
Esta linda Primavera
De Jorge da Conceição,
Cuja posse era quimera.

A beleza da figura resulta de uma modelação perfeita, fortemente naturalista, conjugada com um cromatismo harmonioso. Para além disso, uma observação mais minuciosa do exemplar, torna possível deduzir que, no decurso da sua manufactura, ocorreu uma mudança de paradigma relativamente à produção de barristas que antecederam Mestre Jorge da Conceição.
Em primeiro lugar, as flores do arco deixaram de estar representadas por discos cilíndricos coloridos e pintalgados, para serem mostradas, ainda que de uma maneira generalista, por flores com tridimensionalidade, ostentando uma parte frontal e uma parte posterior, distintas.
Em segundo lugar, o vestido deixa de apresentar folhos apenas no fundo, para os apresentar também nos punhos e no amplo decote que vai de ombro a ombro.
Em terceiro lugar, a fita do chapéu deixa de ser uma mera pintura e adquire ela própria, tridimensionalidade.
Em quarto lugar, o topo da base deixa de ser sarapintado, pompeando aquilo que configura ser um chão atapetado de flores.
Tudo isto é de se lhe “tirar o chapéu” e dai que, apesar de ser paisano, me ponha duplamente em sentido. Em primeiro lugar, pelo trabalho de excelência de Mestre Jorge da Conceição. Em segundo lugar, pelo facto de a Primavera envergar um vestido com as cores da nossa bandeira nacional, que de imediato despertam em mim um sentimento patriótico.
Obrigado Mestre Jorge da Conceição por me ter enchido as medidas com esta criação germinada a partir da sua grande alma de artista e à qual a magia das suas mãos conferiu forma e cor, transmitindo-lhe harmonia, perfeição, beleza e elegância. Bem-haja!


Fig. 2 - Primavera (aspecto posterior). Mestre Jorge da Conceição (1963 - ).