quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Eu e os Bonecos de Estremoz


Hernâni Matos e alguns dos seus Bonecos. Fotografia de Fátima Fernandes.

Coleccionar Bonecos de Estremoz
Uma das coisas que colecciono são Bonecos de Estremoz, os quais descobri há cerca de quarenta anos. E digo que descobri porque, efectivamente, nado e medrado em Estremoz, tinha os olhos abertos, mas não via, como acontece a muito boa gente. Até que um dia, os meus olhos foram para além da missão elementar de observar o óbvio. Então, a minha retina transmitiu às redes neuronais um impulso nervoso que se traduziu numa emoção com um misto de estético e de sociológico. Foi tiro e queda a minha atracção pelos Bonecos de Estremoz.
Bonecos que duplamente têm a ver com a nossa identidade cultural estremocense e alentejana, Bonecos que, antes de tudo, são arte popular, naquilo que de mais nobre, profundo e ancestral, encerra este exigente conceito estético-etnológico.
Bonecos moldados pelas mãos do povo, a partir daquilo que a terra dá - o barro com que porventura Deus terá modelado o primeiro homem no sexto dia da criação do Mundo, tal como nos diz o Génesis.
Foi com esse mesmo barro que as bonequeiras de setecentos começaram a criar aquilo que se convencionou chamar “Bonecos de “Estremoz”. Bonecos que nascem nus e depois vão sendo vestidos e enfeitados, que os Bonecos também são vaidosos. Bonecos que depois de secos, são cozidos no forno e pintados com cores minerais já utilizadas pelos artistas rupestres de Lascaux e Altamira no Paleolítico, mas aqui garridas e alegres, como é timbre das claridades do Sul. Por fim, são protegidos com verniz.
Invariância e mutabilidade nos Bonecos de Estremoz
Os Bonecos de Estremoz são pela sua excelência, notórias marcas de identidade desta terra transtagana. E são-no duma maneira que supera o estatismo e que se torna dinâmica. É que a manufactura de cada boneco encerra em si duas componentes distintas: a invariância e a mutabilidade.
Em primeiro lugar, invariância, porque encerram em si mesmos traços de identidade que se mantêm de barrista para barrista, tal como o gesto augusto do semeador reproduz ancestrais trejeitos padrão.
Em segundo lugar, mutabilidade, já que cada barrista tem a sua própria individualidade, o seu próprio modo de observar o mundo que o cerca e de o interpretar à sua maneira. Lá diz o rifão: “Quem conta um conto, aumenta um ponto”. É assim que cada barrista, sem pôr em causa a essência temática de cada figura, acrescenta-lhe pormenores através dos quais fixa a posição da mesma ou sugere movimento, bem como pormenores do vestuário e dos utensílios usados, assim como particularidades da actividade desenvolvida. Com esta mutabilidade, os Bonecos de Estremoz transvazam a mera produção monolítica e ascendem a novos patamares em que se revigoram, qual Fénix renascida das cinzas, o que vem acontecendo desde a sua génese.
Marcas de identidade
A matriz identitária do figurado de Estremoz distribui-se por quatro níveis distintos.
Em primeiro lugar a manufactura “sui-generis” que a distingue de todo o figurado português.
Em segundo lugar é notória a identidade cultural alentejana. As figuras são muitas das vezes protagonistas das fainas agro-pastoris do Alentejo de antanho, envergando os seus trajes populares. São um relato fiel dos ciclos de produção, dos usos e costumes, bem como da gastronomia. A identidade cultural regional está, de resto, presente no alegre e garrido cromatismo das imagens, que reflecte as claridades do Sul.
Em terceiro lugar é patente também uma identidade cultural local, que tem a ver com o quotidiano das gentes, com a vida íntima na comunidade, com o respeito pela instituição militar, com a veneração pelos santos da Igreja Católica e com a comemoração de festas cíclicas.
Em quarto e último lugar estão as marcas de identidade de autor, gravadas ou estampadas na base dos Bonecos ou no interior das peças ocas. São marcas através das quais os bonequeiros assumem a maternidade ou a paternidade de cada peça nascida das suas mãos. Afirmação legítima da auto-estima dos barristas, que nos relembra as siglas gravadas pelos pedreiros medievais nas pedras que afeiçoavam e que transmitiam a mensagem “Esta pedra é Obra minha”.
As marcas de identidade de autor, além de identificarem o artesão, permitem balizar o período de manufactura das figuras, na medida em que os artífices no decurso da sua actividade vão, por vezes, utilizando marcas distintas. Todavia, não só as marcas de autor permitem identificar o bonequeiro, já que cada um tem o seu próprio modo de observar o mundo que o cerca e de o interpretar, legando traços de identidade pessoal nas peças que manufactura e que são marcas indeléveis que permitem identificar o seu autor.
Tradição, inovação e mudança de paradigma
Na galeria dos Bonecos de Estremoz é possível identificar um núcleo central de cerca de 100 figuras que são produzidas pelos barristas de hoje, à semelhança do que fizeram os seus antecessores, ainda que cada um lhe confira as suas próprias marcas de identidade. São os chamados “Bonecos da tradição”.
O trabalho de cada barrista não se esgota, porém, na feitura dos “Bonecos da tradição”. Por sua própria iniciativa, fruto de encomenda ou por sugestão de alguém, os barristas são levados a criar novas figuras que até então ninguém fizera. São aquilo que podemos designar por “Bonecos da inovação”, mas que respeitam o ancestral processo de fabrico dos Bonecos de Estremoz.
Bonecos de Estremoz - Património Cultural Imaterial da Humanidade
Cada boneco de Estremoz fala-nos de um contexto antropológico, social ou religioso. Fala-nos também do seu criador e dos sonhos que lhe povoam a mente. Fala-nos ainda das técnicas ancestrais que o artista popular domina e que lhe brotam à flor das mãos.
Cada boneco é fruto de uma relação de amor de quem procura fazer tudo a partir do nada que é a massa informe de barro. Todavia é também a expressão viva do ganha-pão diário de quem tem necessidade de assegurar a sua subsistência e a dos seus.
Cada boneco é um panfleto de cores garridas e de claridades do sul, próprias desta terra transtagana.
Tomar um boneco nas mãos é criar sinestesias que envolvem os nossos cinco sentidos. É como possuir uma bela mulher que nos enche as medidas e por quem sentimos exactamente o mesmo desejo da semente que fecunda a Terra-Mãe. Por isso, eu amo os Bonecos de Estremoz. Daí que tenha subscrito com alma e coração a sua Candidatura a Património Cultural Imaterial da Humanidade.

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