quinta-feira, 10 de julho de 2014

Palácio Tocha – Quem lhe acode?

PALÁCIO TOCHA - O aspecto deslavado da fachada e o mau estado das janelas são um cartaz
vaticinador da degradação que por ali grassa. Fotografia de Brados do Alentejo, Julho de 2014.

O Palácio Tocha, no Largo D. José I, 100, em Estremoz, foi classificado como monumento de interesse público. Esse o teor da Portaria 40/2014 do Secretário de Estado da Cultura, publicada no Diário da Republica - 2.ª Serie, Nº 14, de 21-01-2014. O diploma define ainda a zona especial de protecção do monumento.
História dum edifício
Para quem tem acompanhado a novela Belmonte, trata-se do edifício onde supostamente reside a família Milheiro e em cujo rés-do-chão funciona a clínica veterinária da Drª Julieta Milheiro.
Trata-se dum imponente solar setecentista também conhecido por Palácio dos Henriques de Trastâmara, construído no início do século XVIII para residência do capitão Barnabé Henriques e sua família, tendo sido transmitido a herdeiros, passando em meados do séc. XIX para a posse do Eng. José Rodrigues Tocha. Nele se hospedou em 1860, o rei D. Pedro V, quando da sua visita à notável vila de Estremoz. No início do séc. XX funcionou ali o Palace Hotel e a sede do Sindicato Agrícola, fundado em 1907 e antecessor do Grémio da Lavoura. Ali morou o cavaleiro tauromáquico D. Vasco Jardim e foi propriedade da família do Dr. José Filipe da Fonseca, que o vendeu ao actual proprietário, ASSOCIAÇÃO DE COLECÇÕES, constituída em Dezembro de 2005, com NIF 507545389 e sede na Praça Marquês de Pombal, nº 1- 8º, em Lisboa.
O edifício em si
Trata-se de um edifício de três pisos com arquitectura residencial barroca, rococó e neoclássica. Tem planta rectangular, prolongada nas traseiras em duas alas laterais sobre um pátio interior, ao qual se segue um extenso jardim. No interior, ao qual se acede através de vestíbulo calcetado a preto e branco com motivos geometrizantes, destacam-se a escadaria de dois patamares, em mármore, coberta com tecto de estuques, e as salas e corredores forrados por painéis azulejares joaninos, rococós e neoclássicos, representando cenas galantes, mitológicas, alegóricas ou de caça. Nos salões nobres estão sempre presentes estuques, frisos decorados, moldurações em mármore e cerâmicas, ostentando o salão central (Sala das Batalhas), silhares alegóricos a campanhas militares regionais e batalhas da Guerra da Restauração, condizentes com a história local e a condição militar do fundador da casa.
A classificação do Palácio reflecte os critérios constantes do artigo 17.º da Lei 107/2001, de 8 de Setembro, relativos ao carácter matricial do bem, ao seu valor estético, técnico e material intrínseco, e à sua concepção arquitectónica e urbanística.
Implicações da classificação
De acordo com o artigo 21.º da mesma Lei, os proprietários de bens que tenham sido classificados têm o dever de conservar, cuidar e proteger devidamente o bem, de forma a assegurar a sua integridade e a evitar a sua perda, destruição ou deterioração. Devem além disso, observar o regime legal instituído sobre acesso e visita pública, à qual podem, todavia, eximir-se mediante a comprovação da respectiva incompatibilidade, no caso concreto, com direitos, liberdades e garantias pessoais ou outros valores constitucionais.
De acordo com o artigo 33.º da mesma lei, compete ao órgão competente da administração central, regional ou municipal, determinar as medidas provisórias ou as medidas técnicas de salvaguarda indispensáveis e adequadas.
Uma dó de alma
O aspecto deslavado da fachada e o mau estado das janelas são um cartaz vaticinador da degradação que por ali grassa. Vidros partidos numa janela do terceiro piso são um convite à nidificação de aves, entre elas os pombos, uma praga que assola Estremoz. No telhado, a erva é senhora e rainha. Fotografias de Pedro Godinho, colhidas em 2007 e disponíveis no SIPA (Sistema de Informação para o Património Arquitectónico), são reveladoras de infiltrações que há no edifício, fora aquilo que não se vê. Os indícios de infiltrações começam logo no vestíbulo de entrada, são também visíveis no primeiro patamar da escadaria principal e na cobertura da escadaria.
É uma dó de alma ver aquele edifício assim. Gostaríamos que ele tivesse um destino diferente de outros como o edifício da Alfaia, o edifício Luís Campos ou o Palace Hotel, que são uma mancha triste na malha urbana desta urbe transtagana, a quem o nosso conterrâneo, o poeta Silva Tavares chamou um dia “cidade branca”. Aqui fica um registo que gostaríamos de não ter feito.
Quem lhe acode?
Urge travar o estado de degradação do edifício e promover o seu restauro e conservação. O proprietário e a administração pública têm responsabilidades que devem ser assumidas. É que o edifício é uma jóia arquitectónica da cidade e um tesouro em património azulejar, no qual ressalta o envolvimento de Estremoz e do seu termo, na luta pela independência nacional contra o jugo filipino. São páginas de História Regional e Nacional que estão ali contadas.
O vetusto edifício parece pedir socorro. Quem lhe acode? 


PALÁCIO TOCHA -  Vidros partidos numa janela do terceiro piso são um convite à nidificação
de aves, entre elas os pombos, uma praga que assola Estremoz. Fotografia de Brados do
Alentejo, Julho de 2014.
PALÁCIO TOCHA -   No telhado, a erva é senhora e rainha. Fotografia de Brados do Alentejo, Julho
de 2014.
PALÁCIO TOCHA -  Indícios de infiltrações no vestíbulo de entrada. Fotografia de Pedro Godinho, 2007.
SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitectónico.
PALÁCIO TOCHA - Indícios de infiltrações, visíveis no primeiro patamar da escadaria principal.
Fotografia de Pedro Godinho, 2007. SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitectónico.
PALÁCIO TOCHA - Indícios de infiltrações, visíveis na cobertura da escadaria.
Fotografia de Pedro Godinho, 2007. SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitectónico.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

5 - Conexão entre patrimónios imateriais da humanidade

Grupo de cantadores.
Ana Bossa (séc. XXI).
Colecção particular.

A identidade cultural alentejana tem a ver com a arte popular, na qual se insere a manufactura dos bonecos de Estremoz. Estes são figuras cerâmicas, geralmente antropomórficas ou zoomóficas, confeccionadas através de práticas ancestrais iniciadas em Estremoz, que remontam aos finais do séc. XVII – princípio do séc. XVIII e que chegaram aos nossos dias.
A identidade cultural do povo alentejano tem igualmente a ver com o cante, que segundo a tese litúrgica do padre António Marvão teve origem em escolas de canto popular fundadas em Serpa, por monges paulistas do Convento da Serra d’Ossa, os quais tinham formação em canto polifónico.
Manuel Ribeiro na "Lembrança dos Cantadores da Aldeia Nova de São Bento, Mértola, Vidigueira e Vila Verde de Ficalho", diz-nos:
Só no Alentejo há o culto popular do canto. Ali se criou o tipo original do “cantador”. Pelas esquinas, altas horas, embuçados nas fartas mantas, agrupam-se os homens: esmorece a conversa, faz-se silencio e de subito, expontâneamente, rompe um coral. É o diálogo em que eles melhor se entendem, é a conversa em que todos estão de acôrdo.
Quem não viu em Beja, em certas ruas lôbregas, em certos recantos que escondem ainda os antros esfumados das adegas pejadas de negras e ciclopicas talhas mouriscas, quem não viu duas bancadas que se defrontam e donde se eleva um canto entoado, solene e soturno, com o quer que seja da salmodia dum côro de monges?
Embora possa cantar só, o alentejano canta sobretudo em coros e esse canto é sério, dolente, compenetrado e mesmo solene, porque o alentejano é lento, comedido e contemplativo, por força do Sol escaldante.
O cante e os bonecos de Estremoz são duas fortes marcas identitárias do Alentejo, qualquer deles candidato a Património Imaterial da Humanidade. Para estabelecer a conexão entre as duas candidaturas, nada melhor que o exemplar do figurado de Estremoz que ilustra a presente crónica.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Estremoz e a Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia

PARTIDA DE VASCO DA GAMA PARA A ÍNDIA EM 1497.
Aguarela de Alfredo Roque Gameiro (1864-1935).
  
A 8 de Julho de 1497, a Armada de Vasco da Gama (1460 ou 1469-1524) parte de Belém, em Lisboa, rumo à Índia. É composta pelas naus São Gabriel, São Rafael e Bério.
De acordo com Rui de Pina (c. 1440-1522), cronista oficial de D. João II (1455-1495) e de D. Manuel I (1469-1521), Vasco da Gama terá sido investido no cometimento do Caminho da Índia, por D. Manuel II, na alcáçova do Castelo de Estremoz e terá transportado com ele um pendão bordado por Senhoras de Estremoz.
No local da partida da Armada, viria a ser construída a Torre de Belém, jóia da Arte Manuelina. À direita do quadro, com um bordão na mão esquerda, está o "velho do Restelo", em torno do qual Camões no Canto IV (estâncias 94-104) de "Os Lusíadas", construiria o chamado "Episódio do Velho do Restelo":

94
Mas um velho, de aspecto venerando,
que ficava nas praias, entre a gente,
postos em nós os olhos, meneando
três vezes a cabeça, descontente,
a voz pesada um pouco alevantando,
que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiências feito,
tais palavras tirou do experto peito:

95
Ó glória de mandar, ó vã cobiça
desta vaidade a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
c'ua aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
que crueldades nele experimentas!

96
Dura inquietação da alma e da vida
fonte de desamparos e adultérios,
sagaz consumidora conhecida
de fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
sendo digna de infames vitupérios;
chamam-te Fama e Glória Soberana,
nomes com quem se o povo néscio engana!

97
A que novos desastres determinas
de levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
d' ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

98
Mas, ó tu, geração daquele insano
Cujo pecado e desobediência
Não somente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano,
Da quieta e da simpres inocência,
Idade d' ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d' armas te deitou:

99
Já que nesta gostosa vaïdade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome, esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la Quem a dá:

100
Não tens junto contigo o Ismaelita,
com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
se tu pela de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
se queres por vitórias ser louvado?

101
Deixas criar às portas o inimigo,
por ires buscar outro de tão longe,
por quem se despovoe o Reino antigo,
se enfraqueça e se vá deitando a longe;
buscas o incerto e incógnito perigo
por que a Fama te exalte e te lisonje
chamando-te senhor, com larga cópia,
da Índia, Pérsia, Arábia e da Etiópia"

102
Oh, maldito o primeiro que, no mundo,
nas ondas vela pôs em seco lenho!
Digno da eterna pena do Profundo,
se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
nem cítara sonora ou vivo engenho
te dê por isso fama nem memória,
mas contigo se acabe o nome e glória!

103
Trouxe o filho de Jápeto do Céu
o fogo que ajuntou ao peito humano,
fogo que o mundo em armas acendeu,
em mortes, em desonras (grande engano!).
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
e quanto para o mundo menos dano,
que a tua estátua ilustre não tivera
fogo de altos desejos, que a movera!

104
Não cometera o moço miserando
o carro alto do pai, nem o ar vazio
o grande arquitector co filho, dando
um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando
por fogo, ferro, água, calma e frio,
deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte! Estranha condição!

Vasco da Gama atingirá Calecut em 1498 e regressará a Lisboa em 1499, onde será coberto de honrarias por D. Manuel I.


  
CHEGADA DE VASCO DA GAMA A CALECUT EM 1498.
Aguarela de Alfredo Roque Gameiro (1864-1935).

segunda-feira, 7 de julho de 2014

O Palácio Tocha na Belle Époque

Fig. 1 – PALÁCIO TOCHA NO INÍCIO DO SÉCULO XX.
Bilhete-postal ilustrado de editor desconhecido.
Colecção do autor.

A imagem da Fig. 1 reproduz um bilhete-postal ilustrado expedido de Estremoz, a 8 de Agosto de 1913, por Frederique da Silva Pinto, para Luiz Pinto Marvão, proprietário dum Armazém de Mobílias, no Porto, a quem solicita um catálogo de preços. O porte do bilhete-postal era 1 centavo e hoje é 0, 42 €, ou seja 8.400 vezes mais. Só por isso, que não por saudosismos balofos, apetece-nos voltar ao tempo da outra Senhora.
Frederique da Silva Pinto era o proprietário do Palace Hotel, que na época funcionava no segundo e terceiro piso do Palácio Tocha e era um Hotel destinado à alta sociedade. Era um luxo pernoitar nele, sobretudo no quarto em que se hospedou em 1860, o Rei D. Pedro V.
O rés-do-chão só tinha uma entrada, correspondente hoje ao número 100-A do Largo D. José I, em Estremoz. Ainda não tinha sido rasgada porta para o nº 100, onde funcionou o consultório do dentista, Dr. Vieira da Luz, nem para o número 100B, onde na telenovela Belmonte, supostamente funcionava a clínica veterinária da Drª Julieta Milheiro. Nessa época funcionava no rés-do-chão esquerdo, a sede do Sindicato Agrícola, fundado a 11 de Março de 1907 e antecessor do Grémio da Lavoura. A direcção do Sindicato, que nesse ano de 1913 realizou em Estremoz uma exposição de gado caprino, era constituída pelos Senhores Roberto Rafael Reynolds, Luís Ferreira de Carvalho, José de Matos Cortes, Joaquim José de Almeida Caramelo e António Sampaio de Sousa Maldonado. A vida do Sindicato teve altos e baixos até que em 1 de Agosto de 1941, passou a integrar a Organização Corporativa da Agricultura, com a designação de Grémio da Lavoura.
Em 1913 estava-se no final da Belle Époque, caracterizada por inovações tecnológicas como o automóvel. Frente ao Palácio Tocha vê-se estacionada uma “Dona Elvira” da época, no sentido contrário àquele em que se fazem actualmente o estacionamento e a progressão do trânsito. Na época e de acordo com a imagem da Fig. 2, os trens puxados a cavalo coexistiam com os automóveis que estacionavam frente ao Palace Hotel, à semelhança do que com o beneplácito das autoridades, acontece ainda hoje nalgumas artérias da cidade.
De salientar que na época, ainda não estava murado o chamado Jardim Eng. José Rodrigues Tocha, levantado pelo proprietário no largo fronteiro. Este começou por se chamar Rossio de São Brás e tem conhecido ao sabor das circunstâncias, designações como Largo D. José I, Largo General Graça e Largo Dragões de Olivença


BIBLIOGRAFIA
[1] - CRESPO, Marques. Estremoz e o seu Termo Regional. Edição do autor. Estremoz, 1950.
[2] – ESPANCA, Túlio. Inventário Artístico de Portugal. Distrito de Évora. Concelhos de Arraiolos, Estremoz, Montemor-o-Novo, Mora e Vendas Novas. I volume. Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa, 1975.


Fig. 2 – PALÁCIO TOCHA NO INÍCIO DO SÉCULO XX.
Bilhete-postal ilustrado de editor desconhecido.
Colecção do autor.

Fig. 3 – JARDIM DO PALÁCIO TOCHA NO INÍCIO DO SÉCULO XX.
FREDERIQUE DA SILVA PINTO E FAMÍLIA.
Bilhete-postal ilustrado de editor desconhecido.
Colecção do autor.